04 Agosto 2007

 
Amigos leitores, amigos de blogs, estou publicando em novo endereço. Por favor atualizem: (http://www.helder.blog.br/)

GRATO A TODOS

27 Julho 2007

 
Pintura: Peter Paul Rubens
(JABUTIS)


8° TRECHO DO ROMANCE INFANTO-JUVENIL, 'JABUTIS'


Passado o contratempo, voltou a vigiar seus Ovos. O corpo na quentura normal, o coração na balada certa. A língua salivando, banhando a goela. A calmaria parecia ter voltado, o mundo era um só escuro sem piado e sem uivo. Mas o pensamento caíra em divagação. Imóvel, a Jabuti deixara a cabeça ser invadida por um empesto de Vaga-Lumes. Maiores que o zombeteiro de há poucos. O zombeteiro era uma perebinha de nada agora. Tão maiores quanto a Galinha rechonchuda e em vôos faziam zoadas de helicópteros e assanhavam a poeira do mundo. Tão arrepiadores que as luzes verde néon encandeavam tudo e a vista ficava latejando.

E todo aquele empesto de Vaga-Lumes, a exemplo do zombeteiro, danavam-se a rir da Jabuti. Um riso tão estridente que o mundo balançava e o Pé de Jambre, que era tão copado, desfolhara-se de medo. Os bichões ali, acendendo e apagando num imenso natal, Zoando, rindo do peso da Jabuti; um peso de catedral. Como se já não bastasse isso, ainda lhe foram mijar em cima. Os jatos amarelos lhe caindo ao casco. Escorrendo pelos cantos. Encolhia as pernas e a cabeça. Trancada em si. A Jabuti sentia aquele barulho de mijo lhe pressionando o casco e mais parecia querer transpassá-lo. De repente o casco desprendia-se do chão. Boiava no quintal inundado de mijo. A galinha, os Pintos e o Galo chegando mais para cima do poleiro. O Cachorro nadando, agarrando-se ao muro, subindo, sacolejando o corpo e os pingos salpicando um mar de mijo, criando ondas. Dentro da casa seu Antenor devia está em cima da mesa com o gato a tiracolo, tapando o nariz por causa da inhaca.

A Jabuti a deriva no mijo. Um mijo tão quente que começava a levantar fervura. As bolhas emergindo para explosões. O casco queimando, a língua numa brasa só. As pernas tostando, a respiração evaporando, os olhos derretendo, o casco puindo-se, em cinzas. O coração ardendo nas paredes internas. O coração que só uma batata quente. A mijada que não cessava. A risada zombeteira. A luz encandeando. Um inferno.

Balançara a cabeça com toda força. E o pensamento, que caíra nesse devaneio macabro, parecia ter sido espanado. Varrido para regiões profundas, para além das raízes do Pé de Jambre. Mas a Jabuti, embora feito a varredura, ficara ainda com umas faíscas latejando o juízo. Uns ciscos que não saem numa primeira faxina ainda lhe assaltavam de quando em quando. E na verdade a Jabuti parecia ter sentido toda a queimação que o pensamento lhe fizera de assalto. Remoída como estava, o juízo num trapo só, acabara o cansaço lhe dominando, o corpo decaindo e num breve instante caíra num sono de pedra.

(Contunua na próxima semana)



18 Julho 2007

 
Pintura: Peter Paul Rubens
(LIVRO DE DEPOIMENTO)


ALMOÇO

O cheiro tomava a casa. Na cozinha os bifes ardiam na frigideira. Com um garfo, minha Avó virava as peças, cuidando para que o óleo não lhe salpicasse a cara. Partia uma cebola em roletes grossos, sacudia entre as peças. Logo a cebola engelhava amarela. O gato lhe roçando as pernas, lambendo as varizes, recebia um chute. Desconfiado, recolhia-se a um canto. Sentava e esticava o pescoço, chupando o cheiro com as ventas. Uma tampa cobria a frigideira e o barulho da carne estralando diminuía.

Os pratos e os talheres logo ganhariam assentos à mesa.

_Almoço.

A voz toda parecia mergulhar nos ouvidos. Imprimia-mos a marcha dispostos. Sentávamos e uma ligeira inquietação se apoderava. Um por um, os pratos eram levados a beira do fogão. A Avó mergulhava a concha no feijão e nós dizíamos a quantidade. Meu Avô sempre comia duas conchas que se avolumavam na farinha quebradiça. O arroz branco cobria o feijão. A cebola e o óleo eram despejados em círculos. A carne ficava na croa, a fumaça bamba, dissipando-se. O gato, recolhido num canto, lambia os beiços. A Avó tangia-o. O Avô jogava-lhe as gorduras.

_Pra entupir uma veia é logo. Gato tem sete vidas.

Minha Avó partia a carne com a faca. Meu Avô, os braços magros, os dedos compridos, partia pressionando-a com a colher. Eu, tão orgulhoso, tentava imitá-lo. Pelejava. Prendia a respiração, imprimia força ao braço moreno, enfeava a cara. Inútil, na certa aquela colher estava cega. O corte havia perdido o fio. As colheres sempre me chegavam cegas. Riam de mim, os meus velhos. Um riso de comida nas dentaduras. O melhor riso que já comi.

Havia sempre uma mosca vadiando a mesa. Um pano para minha Avó limpar as mãos de graxa. Um pão que meu Avô inteirava ao almoço. O saleiro que minha Avó sempre beliscava. O caneco de zinco, sem asa, de meu Avô.

E o ponche de uva deixava a língua roxa.

15 Julho 2007

 
Pintura: Peter Paul Rubens
(JABUTIS)


7° Trecho do ramance infanto-juvenil, 'JABUTIS'

NOITE DE AGONIA

O mundo todo no escuro. A Lua, uma filepinha de nada, parecia economizar energia. As estrelas piscavam miúdas. O Cachorro parecia um feto dormindo ao relento. No poleiro, um barulho de assas batendo. Que seria aquilo? Fosse madrugadinha, saber-se-ia que era o Galo preparando o canto para “tecer a manhã”. Os pintinhos mal estalavam as assas ainda. Só podia ser mesmo a galinha, gorda como estava, havia se desequilibrado de novo. Estava assim, equilibrava-se mal na madeira e no sono fundo, o corpo perdia o equilíbrio, pendia o papo e o peito para um canto. Já caindo, acordava de sopetão. Batia as assas com força para sustentar o chumbo do corpo. Esbugalhava os olhos. Respirava fundo. Piscava os olhos devagar. Fechava-os. Dormia.

Ao longe, uma luzinha verde acendia e apagava. Voava assim. Acendia num canto. Apagava. E mais a frente acendia de novo. Aproximava-se rápido. A Jabuti esticara o pescoço.

_Olá!
_Olá! Respondeu a Jabuti.
_Pensei que só os Vaga-Lumes ficavam acordados num tardão desses.
_É verdade! Tardão assim todos por aqui dormem como defuntos. Só o poleiro de vez em quando se remexe. A Galinha tem um corpo pesado para um sono leve. E esticou um riso tímido, criando no pensamento a imagem da amiga.

_Então é por isso que a senhora não dorme, tem o corpo mais pesado que o da Galinha. E soltou uma gargalhada fina o Vaga-Lume. Tem um corpo que parece um bloco de cimento, tão pesada e dura. Acrescentou, aumentando a gargalhada.

A Jabuti franziu a testa e pôs um amargo a boca, dando a entender que não estava gostando do proseado. Como estava escuro, percebeu que sua expressão era inútil. A gargalhada fina, aumentando, a luz verde acendendo e apagando. A cara do Vaga-Lume aparecendo e sumindo. A boca arreganhada, maior que tudo. A gargalhada escura, o corpo claro, o corpo gargalhando, a luz acesa no corpo apagado, a riso aceso no apagado, o apagado acendendo o riso, o riso que apagava e acendia. A cabeça da Jabuti fora embaralhando aquilo tudo. Os miolos começavam a esquentar. O suor ia rompendo os poros, escorrendo da cabeça, pingando nos olhos. Os olhos ardendo, inchando, avermelhando. Todo o corpo tenso, a respiração descompassada. A boca seca. A garganta travando. Estivesse dormindo, julgaria todo aquele inferno um pesadelo. Mas não, o diabo estava ali, no escuro da noite, atentando a paz da Jabuti. Não lhe recebera bem? Não gracejou querendo puxar conversa? Por que malvadeza vinha aquele inseto, do mais escuro infinito tirar-lhe de tempo?

_Tão pesada quanto um Elefante, uma baleia. Insistia em gargalhar o Vaga-Lume.
_Some-te daqui, diabo. Surtara a Jabuti. Estou no meu canto, quieta, pondo vigília aos meus Ovos. Esperando as minhas crias darem com o mundo. E me vem um cão. Um satanás condenado a viver somente à noite, entre o claro e o escuro que traz na bunda.

E num movimento de força suprema, acertou-lhe na bunda um chute medonho; bem na hora que a luz verde néon acendia. O Vaga-Lume rodopiou no ar e se foi embora, tonto, trombando em tudo e com a luz enguiçada.

_O diabo que te carregue cão dos infernos. Disse a Jabuti.


(Continua na próxima semana)



09 Julho 2007

 
Pintura: Peter Paul Rubens
(LIVRO DE DEPOIMENTO)


I N V E R N O

O inverno chegava e punha os arroubos da infância trancafiados. Toda a meninice contida as paredes húmidas. O mofo impregnava-se. Tomava as quinas, desenhava a silhueta de um sol distante. A Avó molhava um saco, torcia, e danava-se a esfregar o cimento liso. Arrancava o mofo e a tinta. Zelosa, forrava tapetes em cada porta. A casa toda limpa. A Santa Ceia, espanada.

O banho, adiando-se para mais tarde. Para o esquecimento. Enganava-me nessa prática. Atenta as minhas rabugices, a Avó sentenciava o banho. “Um porco, esse menino.”

O Avô, metido em casacos, lixava os calcanhares secos. O couro morto, puindo-se. Aparava os cabelos do nariz; a tesoura rombuda emperrando-lhe a perícia. Olhava-se ao espelho, demorava-se nas rugas; soletrando-as. O inverno trazia mais tempo as vaidades.

_O mundo está branco. Um breu do avesso.
_ A casa é um azul de frio só.
_Esse menino está roxo...

O inverno trazia arco-íris à boca de minha Avó.

Meu Avô assoprava o bafo quente nas mãos. Esfregavam-nas com força. As mãos iam adquirindo elasticidade. Desentrevando.

A goteira, num jato fino e permanente, ia cavando o chão. Eu, sobre a cama. Fundo.


04 Julho 2007

 
Pintura: Peter Paul Rubens
(EOÍSMO)

RETALHO


Porém com quantos paus a canoa se faz
Com pregos?




01 Julho 2007

 
Pintura: Peter Paul Rubens
(JABUTIS)

6° Trecho do ramance infanto-juvenil, 'JABUTIS'

A Mamãe Jabuti olhou a área de serviço. Enxergara a máquina de lavar. Um varal em zigue-zague na parede. As roupas de Seu Antenor, tão alvas, penduradas a secar na sombra. Na certa Seu Antenor não castigaria suas roupas ao Sol. Ainda mais um Sol azoretado daquele. Vira ali a pá e a enxada, o ciscador e a foice. As ferramentas de se gastar no quintal. Vira as cumbucas com água e mamão picado, sentiu ainda o cheiro da fruta rodar-lhe o nariz e o frescor do líquido esfriando o carburador interno. Por que Seu Antenor não pusera aquelas cumbucas à sombra do Pé de Jambre? Pensara. Na certa que facilitaria sua vida, presa que estava aos Ovos que custavam a brotar da terra. Mas, reflexiva que era logo achava uma resposta condizente. Havia de ser pela poeira, que em certas horas se levantava como um cortina grossa. Havia de ser pelo Sol quente, mornando a água e apodrecendo as frutas. Havia de ser contra o sedentarismo que a ela se empunha; ali, a sombra do Pé de Jambre, plantada como ele, a espera das crias explodindo da terra.

Ao longe, a Galinha surgira. Um empesto de Pintinhos numa desordem alegre, lhe acompanhava. Ciscavam sem muita habilidade. As pernas fracas, em cambitos, ainda não tinham adquirido os calos, nem a rudeza da mãe. O ciscado miúdo desequilibrava-os. Tombavam. Levantavam zangados, havia reclamação, as caras tensas numa careta. Embirravam. A Galinha, rechonchuda, a tudo isso se divertia. Passava-lhe a infância na memória. Fizera o mesmo em seu tempo. Não entendia por que a mãe tanto ria dos seus tropeços de pinta. Mas agora, a pinta e a franga que fora estavam distantes. Era agora uma Galinha formada; com bico fino e crista vermelha, com penas enraizadas por todo o corpo e unhas fortes para cavoucar a terra dura. Ria, vendo nos filhos a trapalhada de sua meninice. Um riso orgulhoso, de crista alta.

A Mamãe Jabuti fitando tudo. Tudo miudinho ao longe. Uns pontinhos correndo em volta de uma torre cheia de penas. Logo ela estaria naquela condição. O riso largo moldando a cara de felicidade. Uma cara boba.


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