Há algo de antigo, ancestral, em um trabalho de crochê. Pensar que tudo aquilo é um único fio, trabalhado com carinho e paciência, enroscado em torno de si mesmo, como uma teia tecida por aranha benigna, mistério profundo aos olhos de quem não sabe a técnica, segredo imediatamente revelado a olhos experientes, que vêem um trabalho pronto, pegam-no nas mãos e sorriem para si mesmos, como se dissessem “Ah, é assim que foi feito…”, com ar de quem também decifrou o enigma, como se fizesse parte do círculo secreto das iniciadas na técnica ‘milenar’ do crochê.
Quem não entende, não sabe como fazer, olha um trabalho pronto, pega-o nas mãos e franze a testa, dizendo para si mesmo “Que desperdício de tempo, quanta paciência, é mais rápido e barato comprar algo feito à máquina, eu é que não faria isso…” E estão certos.
Realmente é mais barato e rápido, mas quem faz parte do primeiro grupo sabe que não é por economia de tempo ou dinheiro que se faz crochê. É como pintura, escultura, literatura, dança ou qualquer outra arte: faz-se porque se gosta, porque se sabe fazer, porque ao se ter o trabalho pronto experimentamos uma satisfação interior, de coisa bem feita, de coisa feita com carinho, e no caso de uma arte “menor” como o crochê e outros artesanatos, o trabalho tem uma utilidade, vai aquecer ou enfeitar a si mesma ou alguém querido.
Eu disse “arte menor”. Não é o que eu penso, mas parece que é o que se pensa. Arte, com A maiúsculo, é aquela feita por pessoas talentosas, famosas (ou que um dia serão), apesar de nem sempre serem pessoas que “vivem da Arte”. No sentido material. Ainda mais em nosso país, se bem que os artistas, de uma forma geral, nem sempre conseguiram viver da própria arte. Van Gogh que o diga…
A ideia geral é que Arte é algo sem utilidade, alimento do espírito, e com o que só os ricos gastam dinheiro. Aquilo que tem utilidade, ou o que não se enquadra nas categorias artísticas clássicas, é artesanato; coisa de amador, de dona-de-casa. Quem faz sabe o trabalho, carinho, e tempo despendidos, mas quem compra sempre acha caro, não dá o devido valor.
Artesãos em geral só conseguem viver da própria Arte se morarem e trabalharem em cidade turística, fazendo algo pitoresco, do gosto dos turistas, ou se tiverem um desenvolvido senso comercial, para unir seu gosto artístico com o gosto dos prováveis compradores. O problema é que nem sempre quem tem o senso artístico desenvolvido também desenvolveu o senso comercial, então o artesão tem que aprender a ser competente nas duas áreas; isso é bom para ele, pois suas chances de sucesso empresarial aumentam, mas nem todos o conseguem. É aquela clássica imagem do artista “morto de fome” na água-furtada parisiense, que vive só para sua arte e esquece de coisas prosaicas do dia-a-dia, como comer ou pagar as contas.
Os tempos mudaram; hoje é preciso ter um senso empresarial minimamente desenvolvido para se ter sucesso em qualquer empreendimento, até um carrinho de pipoca. E isso se aprende, basta precisar e querer; há muitos cursos, livros, e na pior das hipóteses, pode-se aprender por conta própria, que sempre é o meio mais difícil; não que não funcione, às vezes é como se aprende melhor, e depois não se esquece. Aprendi muitas coisas por conta própria, sei o que digo.
Mas voltando ao nosso amigo artesão ou artista, não basta o trabalho de amor que é criar uma obra artística, hoje é preciso vendê-la, e temos de saber como. Isso não diminui o valor do artista, mas facilita a vida. Materiais custam, tempo custa, a vida custa. Há uma diferença entre esses custos, e o valor da obra de arte. Mas isso é outra história.
Comecei falando de crochê, e nem mencionei o tricô. Culpa minha, que em se tratando de crochê humildemente me incluo no grupo das ‘iniciadas’, mas quanto ao tricô não consigo nem segurar as agulhas direito. Bem que tentei, minha mãe (perita caprichosa e saudosa) tentou me ensinar, mas não adiantava. Comecei no crochê e me acostumei à facilidade do ganchinho da agulha, ah, como era fácil puxar a linha com aquele ganchinho, na hora do tricô faltavam os ganchinhos, a linha não vinha, desisti. Logo eu que sou teimosa e não desisto de (quase) nada na vida, desisti do tricô.
Admiro a arte, os trabalhos, até com um pinguinho de inveja (certos tipos de trabalho só ficam bem se feitos em tricô, não adianta tentar fazer com crochê, fica ‘duro’ demais), mas não é para mim. A minha justificativa é que eu era muito nova, tinha uns doze ou treze anos, nem lembro direito.
De certa forma me redimi, e mais tarde aprendi (sozinha, ou melhor, com a ajuda de uma revista) a fazer crochê tunisiano, que também é chamado de tricô tunisiano. Lindo, macio, encorpado, e junta o melhor de dois mundos: parece o tricô, e é feito com uma agulha longa, como as de tricô; só que com um ganchinho na ponta.
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18 de julho de 2009 at 10:06
Cristine,
teu texto é muito suave, verdadeiro, delicado. E foste direto ao ponto: a necessidade de o artista ter um mínimo de senso empresarial. Concordo plenamente! Existem artistas fantásticos que não sabem vender a própria arte! Saiba que o teu crochê tunisiano me vestiu de cima a baixo. Obrigado pelo texto lúcido.
Charles Silva.
Cristine respondeu:
julho 18th, 2009 at 15:40
@Charles Silva, obrigada pelo comentário. nem todas as pessoas com senso artístico têm habilidades empresariais, mas isso é algo que pode ser aprendido. Boas fontes de pesquisa não faltam, além do ótimo trabalho feito pelo Sebrae.
Outro problema que vejo frequentemente é que os próprios artistas e artesãos não valorizam seu trabalho, e isso faz que o público também não o valorize. É triste, pois há tanta gente talentosa pelo Brasil afora, cujos trabalhos merecem mais destaque.
Grande abraço!
18 de julho de 2009 at 11:52
CRISTINE
Enquanto lia seu escrito, passava, como um filme rápido, a vida simples de uma dona de casa, uma rainha do lar, uma mãe extremosa, uma artesã à antiga, uma artista maravilhosa, uma história contada pelas suas obras, expostas em toalhas, blusas, cortinas, quadros bordados, tão lindos como o coração e a alma daquela que a fizeram.
Sua crônica, Cristine, faz justiça a mulheres, como a minha mãe, uma artista tão bela como a maternidade, tão linda como a criação da vida, tão feliz com o seu trabalho simples e maravilhoso.
Vender ?
Nem se fale: deixou-os todos para seus filhos e estão espalhados por toda a casa, lembranças de imorredoura saudade.
Parabéns pelo seu texto, que me trouxeram essas reflexões.
Cristine respondeu:
julho 18th, 2009 at 15:43
@GUTIERRITOS, eu que agradeço o lindo comentário. A imagem e lembrança de sua mãe também me fez lembrar outra mãe querida, a minha. Também muito talentosa e dedicada, deixou-nos seu amor na forma de lindos trabalhos e na saudade que permanece.
Eis algo que os trabalhos manuais têm de especial: o carinho com que são feitos. E isso, como diz o comercial, não tem preço
Um grande abraço a você e à minha xará, Cidinha.
Bom final de semana!
19 de julho de 2009 at 21:49
Cris
Que texto lindo!
Você, nele, mais parece uma aranha (boa) tecendo, tecendo a sua teia, magistralmente.
Você é um bichinho da seda tecendo palavras em forma de crochê.
São todas bem feitas, nenhuma fora do lugar, nenhum ponto mais frouxo do que o outro.
A trama está perfeita.
E você usa apenas o ponto alto e o ponto baixo.
A consoante e a vogal.
E o resultado dessa arte é duplamente encantador.
O manto tecido em linha.
O texto tecido em palavras.
A minha mãe era uma rainha nessa arte.
No barzinho, suas toalhas de crochê recebem as garrafas de bebidas, agora cheias de minhas saudades.
Ai que dor!
Basta-me a habilidade de quem tece o crochê.
E a de quem tece palavras.
Beijo no coração!
lu
Cristine respondeu:
julho 20th, 2009 at 10:04
@Lu Dias BH, obrigada pelo comentário carinhoso, como sempre. Fico feliz que minhas palavras encontrem eco em corações sensíveis à arte dos trabalhos manuais e das palavras; sou apenas aprendiz nas duas artes, mas ao que parece as mães de todos nós eram peritas no tricô, crochê e nos carinhos maternais.
A saudade fica, e as toalhinhas de crochê e outros mimos nos lembram daquelas a quem mantemos dentro do coração…
Beijos de uma aranhinha boa e tecedeira de palavras a outra, com muito carinho!
19 de julho de 2009 at 22:04
Cris,
E olha aqui uma forma de amor profundo e delicado e puro.
E os comentário tão lindos quanto o texto, complementam esta arte da escrita que tanto emociona quem se dedica a ela, quem le, quem sonha.
Beijo!
Cristine respondeu:
julho 20th, 2009 at 10:07
@Jovimari, também adorei os comentários, são todos lindos e sensíveis, e realmente são algumas daquelas pequenas demonstrações de amor às quais você se referiu em seu texto.
Aqui somos todos privilegiados por poder contar com leitores tão simpáticos e participativos. É mesmo uma grande família!
Um beijo, e uma ótima semana!
27 de julho de 2009 at 21:44
[...] publicado no Alma Carioca em [...]